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Uma crítica ao trabalho digital

Cada post, comentário ou login que fazemos numa App mobile ou num media social pode ser considerado um processo semelhante a “estar a trabalhar”. Ou seja, quando partilhamos uma informação, opinião ou, sobretudo, publicamos um texto mais elaborado online, estamos a criar conteúdos com um valor intrínseco para as plataformas digitais, que beneficiam disso.

Este é o ponto de vista do sociólogo Antonio A. Casilli (em entrevista a um jornal francês): todos nós somos trabalhadores digitais alienados – no caminho para trabalhar 24/7. Casilli constrói o seu raciocínio baseado no facto de que o nosso comportamento digital é: (i) uma fonte de valor, (ii) cuidadosamente avaliado e valorizado pelas plataformas, e (iii) objeto de um contrato – de licença de utilização.

As grandes plataformas mundiais estão a receber uma quantidade incrível de dinheiro… portanto, porque é que não podemos receber a nossa parte quando nós e os nossos dados pessoais são um produto tão atraente para os anunciantes? (Para ser explícito, Casilli não é um defensor da compensação monetária direta aos utilizadores, mas sim de uma remuneração derivada de um imposto sobre as plataformas – que, no final, vai dar ao mesmo: meter as mãos dos utilizadores no cofre das gigantes Facebook ou Google).

O que é interessante nesta situação, é que esta é semelhantemente paradoxal àquela que descrevi sobre o “escândalo” dos investidores do Oculus/Kickstarter: o facto das grandes organizações fazerem lucros consideráveis através do consumo dos utilizadores não tem nada de novo. O que se passa, então, de diferente nesta Era digital que possa explicar que os consumidores (e não apenas os trabalhadores) podem receber uma parte do valor gerado?

O fim do valor da utilidade

A explicação que sugiro baseia-se em três pontos:

  • As plataformas gratuitas para os utilizadores, como o Facebook ou o Google, estão presas à armadilha do conceito “free”: os utilizadores tendem a esquecer, gradualmente, o “negócio” inicial que fizeram com as plataformas: “recebo um produto gratuito e concedo-vos o direito de monetizarem os dados que gero e a usá-los“. O resultado é uma inversão da perspectiva: os utilizadores sentem que são os criadores do produto, portanto ignoram o que recebem e focam-se apenas no quanto as plataformas fazem. Dois caminhos possíveis são: ou os utilizadores recuperam um melhor controlo dos seus dados, ou os utilizadores são recompensados pelo valor que oferecem às plataformas – e, a meu ver, estamos a caminhar para a última hipótese.
  • Além disso, os utilizadores caem no que se pode chamar a ilusão da personalização (tal como acontece com os apoiantes do crowdfunding). Mesmo quando utilizamos plataformas idênticas, vivemos experiências personalizadas através delas: temos a nossa própria lista de amigos ou seguidores, partilhamos as nossas próprias imagens, submetemos os nossos próprios pedidos, etc. Esta criação pessoal (em massa) pode levar-nos a perceber o quanto cada um de nós contribui para a valorização das plataformas – e que devemos ser compensados em conformidade. Esta perceção óbvia da nossa singularidade e contribuição é o que faz toda a diferença. Porque, se dermos um passo para trás, não há nada de novo em contribuir para uma agregação de valor: na “antiga” economia, alguma vez pediu uma recompensa por escolher a cor do seu carro – algo que o fabricante de automóveis vai usar posteriormente no planeamento do próximo modelo?
  • O último argumento é que no mundo digital é cada vez mais possível medir o valor gerado por cada utilizador com precisão (por exemplo, imaginemos o seguinte caso: “eu publico um post com uma recomendação sobre um restaurante, de seguida 17 dos meus amigos colocam um “gosto”, três deles “gostam” da página do restaurante recomendado e, por fim, um deles reserva três lugares para a noite seguinte). E os utilizadores sabem que as plataformas já o reconhecem e que para anunciar utilizam, cada vez mais, poderosos mecanismos de segmentação (em tempo real) de forma a chegarem mais facilmente ao target pretendido. Assim (e com base nos dois primeiros pontos), diria que todos nós nos sentimos seduzidos a, cada vez mais, separar tudo a um nível micro, mas em termos de valor monetário – é a economia granular. E o que é extraordinário é que os entusiastas do mercado livre e pensadores socialistas parecem estar inclinados a acreditar neste cenário.

Estes três fatores convergem para um resultado inevitável: o valor da utilidade está a morrer – não porque não usemos mais as coisas, mas porque a utilização por si só é inútil e não há nada que possamos fazer para ajudar, apenas, e invariavelmente, reduzi-la a algum tipo de cash flow.

A informal gamificação do trabalho

Uma parte do pensamento de Casilli é preocupante: se imaginarmos a situação em que publicamos um post no Facebook e que pode representar o mesmo tipo de trabalho que traduzir um texto no Mechanical Turk – e que a dicotomia consciente/inconsciente não é a resposta certa, porque podemos ser “felizes mas alienados”.

Na minha opinião, Casilli ignora o valor da utilidade, focando-se apenas no trabalho. Goste-se ou não, eu estou contente por ter um lugar onde posso publicar fotografias para os meus amigos e familiares (que moram longe) verem, enquanto um espetáculo de Mechanical Turk não é preenchido com um propósito de prazer – é apenas uma maneira de fazer dinheiro. Utilização e trabalho são, até agora, duas esferas separadas. 

Um caso muito interessante, que faz a ponte entre as duas realidades, é o serviço Spare5: se abrirmos a App, quando temos um tempo livre para concluir pequenas tarefas (por exemplo, classificar fotografias), como recompensa, recebemos dinheiro por isso – e do outro lado da plataforma estão empresas com negócios online que continuamente definem novas tarefas e recompensas associadas. Neste caso, no qual o “trabalho” é transformado num jogo informal, podemos ver tarefas serem efetivamente feitas, ao longo de intervalos de tempo do nosso dia.

Uma última revelação torna o caso da Spare5 ainda mais fascinante: a empresa introduziu recentemente uma ferramenta na App que permite que os utilizadores do serviço façam pequenas doações a instituições de caridade, isto à parte das suas remunerações através da Spare5. Para os utilizadores de Apps, os micro cash flows podem assim representar tanto entradas como saídas de dinheiro: estamos definitivamente a viver num mundo granular!