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A Economia Granular

As tecnologias digitais e os porta-estandartes que conseguiram beneficiar das suas vantagens (como startups; gigantes da web como a Google e a Facebook; sociedade; e, em menor escala, empresas “tradicionais” e governos) desencadearam uma panóplia de consequências económicas, sociais e políticas.

Na minha opinião, a importante tendência subjacente, tendo em conta as nossas muitas mudanças contemporâneas, é o advento de uma economia granular: a desagregação da nossa economia em ínfimas unidades mensuráveis (granularidade).

Os 3 processos em jogo

A autonomização das coisas

O seu quarto livre no Airbnb, o seu carro ou barco inutilizado na RelayRides ou no Boatbound respetivamente, a sua loja vazia na Storefront… A lista de items e espaços que pode oferecer na partilha online/nos mercados de aluguer poderia continuar. O que se torna evidente é que muitas coisas que antes eram inseparáveis de um todo (digamos por exemplo um carro de uma economia doméstica) estão agora a beneficiar de uma forma de autonomia, sinónimo de uma existência separada das novas fontes de rendimento.

Adicionalmente, podemos ver mais e mais coisas a gerar valor não pela sua utilização, mas pela sua produção. Por exemplo, a 21.co, que poderia fazer de todos os dispositivos geradores (mineiro) de bitcoins, a Aspirational Lamp, que “captaria energia solar e venderia à rede, para que depois pudesse então investir em si mesma e no seu proprietário”, ou o projeto de arte Living Things, transformando mobiliário em unidades de produção de algas, utilizadas para a energia ou consumo alimentar: todos estes projetos, mesmo que certamente levem o seu tempo a materializar-se numa grande escala, apontam para um futuro híbrido onde as coisas podem servir ambas as funções, utilitárias e financeiras.

E amanhã a tendência de autonomização poderá ir ainda mais longe, com um significado de “autonomia” ainda mais profundo: a transformação das coisas em agentes económicos, capazes de tomar as suas próprias decisões, muito provavelmente derivadas de algoritmos. O nosso futuro será preenchido com organizações autónomas descentralizadas ou empresas, com base nos avanços que assistimos na Inteligência Artificial e blockchain.

O desenvolvimento da autonomização vai continuar a sua expansão:

  • Em escala: olhe à sua volta e pergunte-se quais são as coisas que não estão a ser utilizadas, ou que não estão a ser suficientemente usadas, e que poderiam, então, ser utilizadas num novo mercado. A Era Digital diminui os custos de transação e facilita a descoberta: a caça ao inventário ocioso não está certamente acabada.
  • Em espaço & tempo de resolução: se hoje pode alugar-se uma loja por um dia, amanhã poderemos ser capazes de alugar uma prateleira específica por uma hora.

A subdivisão de postos de trabalho em tarefas

Este processo provavelmente vai parecer mais trivial, uma vez que diz respeito a uma grande parte do aumento económico registado no formulário 1099 (do IRS norte-americano relativo ao trabalho independente), e visível através da HandyUberPostmatesInstacart, etc. Na verdade, da mesma forma que as coisas agora podem ser separadas de um todo, as tarefas são cada vez mais separadas do trabalho, que as costumava agrupar. Assim, os trabalhadores são pagos pela tarefa e podem realizar meia dúzia de tarefas paralelas, provenientes de várias plataformas.

Cautelosamente, defenderia que se pode observar uma oposição emergente entre contratantes+mercados de um lado, e empresas tradicionais de outro; num futuro próximo as empresas podem ser qualquer coisa como mercados para tarefas dos próprios. Evoluções, tais como a capacidade de acompanhar com mais facilidade o impacto dos colaboradores (pense em “people analytics”) e mecanismos para juntar rapidamente uma determinada tarefa com a pessoa certa ou equipa, sem quaisquer restrições espaciais (trabalho remoto) ou habituais preconceitos (os algoritmos podem destacar os melhores colaboradores sem filtrar prematuramente a maioria destes utilizando considerações de grau, género, idade etc.), são a chave para este processo.

Na verdade, se olharmos para as plataformas de open innovation, como a Quirky, não é exagerado imaginar as empresas a ampliarem tais práticas externas para os seus processos internos. Além disso, alguns mecanismos de mercado já estão a entrar nos locais de trabalho, como a Zappos, por exemplo, que indexou a remuneração dos colaboradores do call center ao número de chamadas que atendiam (num modelo de uberização), em que é o colaborador que puxa a chamada do cliente.

Certamente, que a subdivisão de tarefas vai crescer em escala e em tempo de resolução.

Descentralização, ou o fim dos “porteiros”

Os serviços digitais estão a transformar cada vez mais o que costumavam ser mercados escondidos em mercados transparentes, separando os produtos ou serviços em causa no processo e distribuindo o poder de decisão para a multidão. Pense, por instantes, sobre os bancos: eles transformam poupanças em empréstimos (e em determinado sentido é um mercado oculto), mas como consumidores não vemos através do banco e não temos nenhuma intervenção na atribuição de empréstimos a pequenas empresas, por exemplo; contrastando com os bancos, as plataformas de crowdfunding permitem que escolha a quem quer emprestar o seu dinheiro, de forma fragmentada. Um mecanismo semelhante poderia ser utilizado amanhã para substituir as agências de notícias “agregadas” por uma relação direta entre leitores e jornalistas.

Cuidado quando nos referimos a processos de desintermediação, pois estamos a assistir a um processo de reintermediação. Os operadores de mercado ainda estão a agir como filtro (a Lending Club escolhe quais são as empresas que são aceites na sua plataforma), mas a diferença é que agora podemos atuar como o último intermediário.

À procura de interseções

A este ponto, pode perguntar-se o que traz a junção da autonomização, subdivisão e descentralização para além de fragmentar a economia num oceano de tarefas monetizadas e pequenas unidades produtivas. Antes de sugerir a transação financeira como resposta, gostaria de destacar vários casos em que os 3 processos acontecem e cruzam-se:

  • Autonomização/Subdivisão: Hyrecar, um mercado de aluguer de automóveis, onde os veículos autonomizados compõem o lado da oferta e os condutores com contrato Uber ou Lyft são o lado da procura.
  • Subdivisão/Descentralização: acesso a conteúdo (os autores são recompensados por cada parte de conteúdo, e o público envia um enorme volume de pequenas quantidades decididas a nível individual).
  • Descentralização/Autonomização: contratos smart com base em blockchain.

Transação financeira, a cola que os sustenta a todos

O vínculo comum de ligação entre os processos de autonomização, subdivisão e descentralização é que tudo pode ser transformado em vários cash flows, claro, tanto do ponto de vista de locador ou locatário: o seu carro (aluguer mensal ou passeios diários vs uma despesa pontual ao comprar um carro), você mesmo (vários montantes de diferentes contratantes vs. um salário de uma única empresa), a sua atenção (veja por exemplo, a wrte.io, que o ajuda a cobrar a quem quer que você leia o email, os seus dados (Datacoup)…

Gostaria de sublinhar que esta mudança não é uma oposição entre apropriação e aluguer – que muitas vezes tendemos a esquecer e que são as faces da mesma moeda e que ainda são donos da economia de aluguer. É mais uma alteração à avaliação das coisas, de discreta & agregada para contínua & granular.

De certa forma, parece que o nível de precisão que atingimos para a análise da web e mobile (por exemplo, custos de aquisição de clientes para canais específicos) é agora aplicável a tudo.

A transformação das coisas em cash flows dá uma nova reviravolta à definição de “economia da partilha”. Em vez da ideia de que partilhamos cada vez mais coisas e que somos mais generosos, poderíamos, de preferência, formular uma lei fundamental para a economia granular: Tudo pode e vai ser transformado em ações (em sentido financeiro).

2 exemplos: A Fantex permite que compre ações de um atleta e a LexShares que compre ações de uma ação judicial. A separação entre propriedade, utilização e distribuição de valor está a acontecer…

A soma de várias linhas de cash flow e a criação de novos ativos financeiros assentes nesta base é o que podemos chamar de financiarização do mundo.

Todos somos gestores de portfólio

Se a financiarização do mundo é uma hipótese válida, então tornar-nos-emos todos gestores de portfólio, alocando tempo, capital e recursos (pense num inventário ocioso novamente) para maximizar os nossos rendimentos ou alcançar um nível de rendimento definido. As receitas iriam, assim, provir de uma variedade de fluxos.

A principal consequência da financiarização do mundo será uma mudança, ou uma integração de parte de um método de avaliação baseado em cash flows para uma tonelada de coisas (objetos ou seres vivos). Pense, por exemplo, sobre o valor de um apartamento: se há um historial de arrendamentos no Airbnb, a partir do qual podemos induzir a receita que seria gerada no futuro, por que razão não deveria ser tida em consideração no cálculo do presente valor do apartamento?

Duas métricas a monitorizar: tamanho médio da transação e remuneração por hora

Se a Economia Granular continuar a desdobrar-se, será interessante descortinar 2 métricas, ambas no ponto de vista dos agentes económicos:

  • O tamanho médio da transação. Este é o pulsar da Economia Granular, que pode levar à queda de inúmeras tendências (subscrição em vez de propriedade, tarefas pagas em vez de empregos, pagamentos individuais em vez de publicidade em massa etc.). Podemos até supor o equivalente à lei de Moore para a economia, a lei de diminuição do tamanho da transação: a cada 18 meses, o valor médio das transações vai diminuir em XX%.
  • A remuneração por hora. Até agora, a remuneração por hora não tem sido uma preocupação primordial para os trabalhadores: o que importa é o salário no final do mês, e o salário por hora é um alicerce disso mesmo (por exemplo, com salários mínimos). Mas se amanhã todos nós nos tornássemos “investidores de tempo”, procurando formas mais lucrativas para alocar o número de horas que queremos ou precisarmos para trabalhar, a perspetiva iria mudar completamente. Enquanto o dinheiro fizer parte da arbitragem entre as diferentes oportunidades de trabalho (porque, claro, existirão sempre outras considerações de interesse nas tarefas), o rendimento por hora tornar-se-á o novo critério a observar.

Uma economia atomizada?

Provavelmente, deve estar a perguntar-se porque é que tenho utilizado a analogia granular em vez de uma atómica bastante semelhante. A razão é que “atomizar” tem maior peso, sendo que uma das suas definições é “privar os outros de relações envolventes”. Mas eu não seria capaz de pronunciar tal declaração: talvez possamos sentir uma escassez de ligações relevantes com outros seres humanos (por exemplo, através da mudança de trabalho), ou devamos alargar a nossa amplitude de conhecidos, graças ao vasto trabalho e às redes sociais. É provavelmente muito cedo para perceber, mas ficam então as questões em aberto.

Questões em aberto

  • Será que a subdivisão de postos de trabalho em tarefas fará de nós trabalhadores hiper-especializados ou “paus para toda a obra”?
  • Quem será o proprietário da economia e, assim, quais serão as consequências da Economia Granular nas desigualdades? Será que todos nós seremos proprietários e arrendatários de outros, com uma densa rede de transações como consequência, ou será que a propriedade será concentrada apenas em alguns? Será que os investidores institucionais possuirão frotas de carros da Uber e ações de processos judiciais, atletas… e você, também o fará como hoje quando compra ações, obrigações ou bens?