Artigo de Elodie Bongrain, Diretora da unidade OBJET na FABERNOVEL INNOVATE Paris
Da China para o mundo, a Xiaomi é o quarto fabricante mundial de smartphones. Será possível estarmos perante uma potencial ameaça aos dois principais players, capaz de redistribuir as cartas no mercado dos smartphones? Ao mergulhar no universo da Xiaomi, as descobertas vão muito para além do mundo dos smartphones. É interessante descodificar o seu sucesso, a sua estratégia e perceber, por exemplo, que a sua ambição é construir um ecossistema completo em torno dos objetos conectados (IOT). Xiaomi (pronuncia-se “Shao Mee”) é uma marca pouco conhecida na Europa e nos Estados Unidos, uma vez que a grande maioria das vendas ocorre na China, o seu país de origem. No entanto, a Xiaomi tem grandes ambições em países emergentes e muito povoados: depois do sudeste da Ásia e da Índia, a marca lançou-se no Brasil, em Junho de 2015, com os telefones Mi. Porquê este sucesso?
Valorizada em mais de 45 mil milhões de dólares (apenas a UBER está à frente), a startup chinesa, criada em 2010, suscita tanto admirações como críticas. A Xiaomi é muitas vezes apresentada como a “Apple Chinesa”, não só pela semelhança dos seus produtos como pelo estilo do seu CEO, Lei Jun, que faz lembrar em traços gerais Steve Jobs. Cópia, inspiração ou pura coincidência, a marca chinesa conseguiu o 2º lugar na classificação do MIT, em 2015, e conseguiu criar um modelo de negócio único que outras marcas já seguiram, como a Lenovo ou a Huawei.
Eis os principais ingredientes do modelo de negócio da Xiaomi:
• Um telefone premium a um bom preço
A relação qualidade-preço foi até agora e continua a ser um dos principais argumentos da Xiaomi. Com preços que chegam a ser três vezes inferiores ao de um iPhone (o 4s), o último topo de gama foi vendido na China a partir de 1299 yuans (ou seja 180€) – pode dizer-se que a tentação é grande. Uma diferença de preço que não se reflete nas boas críticas que a Xiaomi recebe e que fazem corar de vergonha a Apple ou a Samsung.
• Um design verdadeiramente centrado no utilizador
O design sempre foi uma questão sensível para a Xiaomi, acusada várias vezes de lançar produtos muito semelhantes aos da Apple. Jon Ive, que lidera o departamento de design e que é também vice-presidente da Apple, não hesitou em classificar as práticas da Xiaomi de “roubo” e “preguiça…
Apesar de as acusações não serem completamente infundadas, não se pode retirar algum mérito à Xiaomi que também conseguiu colocar o utilizador no centro da sua estratégia. Com um design cuidado e um site com uma navegação agradável, a principal vantagem da Xiaomi reside no seu UI (User Interface), baseado em Android, batizado de MIUI. O facto de ser totalmente personalizado e atualizado todas as sextas-feiras, desde há 5 anos, permite que 1/3 das novas funcionalidades venham diretamente das sugestões dos utilizadores.
Otimizado para o mercado Chinês, o MIUI conta com numerosas funcionalidades interessantes, como a pré-visualização das chamadas de vídeo, a deteção de chamadas não desejadas (comerciais ou fraudulentas) e ainda a disponibilização de um anuário digital para aceder a um conjunto de serviços quotidianos num único interface (chamar um táxi, acompanhar o correio recebido, pagar uma multa, reservar um bilhete, etc.).
• Uma estratégia de marketing baseada na comunidade
Nascida ao mesmo tempo que as redes sociais na China, a Xiaomi entendeu muito cedo o potencial da comunidade e pôs-se em campo para conquistar os primeiros utilizadores e envolvê-los no desenvolvimento dos seus produtos. Com um orçamento muito reduzido nos canais de marketing tradicional (televisão, imprensa ou mupi), a Xiaomi costuma assumir-se como uma “Internet company” e domina na perfeição os códigos do growth hacking. A marca beneficia de uma grande comunidade “Mi Fan” nas redes sociais e no seu fórum. Estes últimos são simultaneamente embaixadores e os seus Beta testers e os seus primeiros compradores sempre que sai um novo produto. A Xiaomi dedica assim grande parte do seu orçamento de marketing para recompensar os seus fãs: eventos offline e exclusivos são organizados ao longo de todo o ano. O “Mi Fan Festival”, que se realiza todos os anos a 8 de Abril, é similar ao conceito de Black Friday, envolvendo grandes promoções durante todo o dia. De registar um recorde de 2 milhões de telefones vendidos em menos de 24 horas na última edição de 2015.
Fãs no lançamento da Xiaomi em Nova Deli, em Abril de 2015
• Uma distribuição direct-to-consumer
Para além de um budget de marketing limitado e de margens voluntariamente mais baixas do que as da Apple ou Samsung, a principal razão que explica o preço (muito) atrativo da Xiaomi reside no seu modelo de distribuição e logística. Apesar da abertura das Mi Stores e da presença através de diferentes parceiros de distribuição, hoje a Xiaomi ainda realiza 70% das suas vendas online (a grande maioria através do seu próprio site), sendo a poupança ligada a esta estratégia de direct-to-consumer refletida no preço de venda. Para além disso, a Xiaomi também é conhecida pela sua tática de “hunger marketing”, que consiste em propor ofertas especiais de venda em quantidades limitadas. A ruptura de stock é quase imediata, gerando um sentimento de raridade ao lançamento de cada produto. Este funcionamento “mesmo a tempo” não serve unicamente para criar buzz, mas permite também à Xiaomi reduzir consideravelmente os seus stocks (sendo a pré-reserva necessária para conseguir chegar à possibilidade de adquirir a grande preciosidade no dia da colocação no mercado).
A Xiaomi é mais uma Amazon do que uma Apple.
A comparação sistemática com a Apple tanto é vista como um elogio, como chateia profundamente os dirigentes da Xiaomi. Numa entrevista concedida em 2013, Lei Jun é categórico: “Se as pessoas querem mesmo comparar-nos, podem dizer que somos um pouco parecidos com a Apple, mas somos muito mais uma Amazon, com alguns elementos da Google”.
Uma visão megalómana? Os pontos comuns com a Amazon ainda são alguns. Através do seu modelo de venda online, a Xiaomi tornou-se, de facto, o principal player do e-commerce na China. Ou seja, poderia comercializar outros produtos que não os seus na plataforma e, assim, monetizar a sua audiência. Na mesma entrevista, Lei Jun não hesita mesmo em dizer que a “Xiaomi vende smartphones como a Amazon vende o Kindle”, explicando que não é o hardware que dá dinheiro à Xiaomi, mas sim a possibilidade de propor conteúdos e serviços aos utilizadores depois de adquirirem o equipamento. A referência à Google é uma chamada de atenção para o início da Xiaomi, que foi criada como empresa de software para desenvolver o MIUI.
E, para além dos smartphones, a Internet Of Things (IoT)
O sucesso da Xiaomi não é indiferente a ninguém e o seu modelo de vendas é seguido por várias empresas chinesas. Agora a Xiaomi já não se contenta em ser apenas um fabricante de smartphones e achou por bem desenvolver um ecossistema completo em torno dos objetos conectados. A marca multiplica efetivamente os seus investimentos em startups ligadas aos objetos conectados desde há alguns anos e já disponibiliza cerca de duas dezenas de produtos no seu site, desde braceletes, medidores de tensão conectados a smart TV.
A Xiaomificação ou o consumo em massa na era conectada
Por um lado, os hardwares ficam rapidamente obsoletos e, por outro, o Big Data ganha cada vez mais importância e conduz-nos para a comoditização progressiva dos objetos físicos. Para além da forte imagem de marca da Xiaomi associada à forte inovação e preços baixos, o valor acrescentado – tanto para empresas como para utilizadores – passa pela disponibilização de utilização de dados a vários níveis com serviços e conteúdos personalizados e evolutivos.
A Xiaomi tem como objetivo tornar-se um dos principais players da IoT, sendo claro quais são os principais pontos estratégicos:
• Inovar à velocidade das startups: Ao contrário dos smartphones, a Xiaomi não produz a grande maioria dos objetos conectados que comercializa, mas ligou-se a um batalhão de startups especializadas em hardware. Para além das vantagens financeiras (não tem I&D) e organizacionais (não tem gestão interna de equipas), isto permite à Xiaomi atingir uma velocidade de produção muito mais rápida e conseguir lançar novos produtos todos os trimestres. Não esquecer que, apesar de ser uma empresa muito jovem, a Xiaomi já tem mais de 5.000 colaboradores.
• Produtos que respondem a necessidades reais: Isto parece evidente, mas os objetos conectados ainda são vistos como objetos de moda ou acessórios considerados muito caros face à sua utilidade real. Por isso, a Xiaomi tenta derrubar esse preconceito com a concepção de produtos:
1// Que respondem a necessidades específicas: a poluição do ar é um tema recorrente na China e muitos recorrem a aparelhos de interior para filtrar as pequenas partículas. A Xiaomi lançou o seu próprio purificador de ar conectado a um preço três vezes inferior à média de mercado.
2// Que sejam acessíveis: A xiaomificação passa antes de mais pela democratização dos hardwares. A estratégia de preço para os smartphones está a ser seguida por todos os produtos da Xiaomi. Um dos últimos sucessos foi a pulseira conectada – Mi Band – vendida a 69 Yuans (aproximadamente 10€) e que ultrapassou as 2,8 milhões de unidades vendidas no primeiro trimestre de 2015 (o que tornou a Xiaomi o 2º maior vendedor mundial de pulseiras conectadas logo a seguir à Fitbit), sendo entre 5 a 10 vezes mais baratas do que as outras marcas no mercado com funcionalidades similares.
3// Que passam pelo crowdfunding: A IoT é um sector que ainda está a dar os primeiros passos e ainda é difícil de prever, neste contexto, quais as tendências que serão um sucesso num futuro próximo (a Google já aprendeu isso com os seus Google Glass). A Xiaomi disponibiliza, por isso, uma plataforma de crowdfunding para startups selecionadas. Neste caso sem grandes preocupações de conseguir financiamento, mas antes como plataforma para validar conceitos e iterar com os utilizadores para recolher feedback, ao mesmo tempo que potencia a exposição mediática antes de qualquer lançamento.
• O smartphone como porta de entrada: os objetos conectados são indissociáveis de uma aplicação mobile que facilite a utilização quotidiana e permite o acesso a novos serviços. Na realidade, com a explosão prevista dos objetos conectados nos próximos anos, o utilizador terá de gerir e saltitar entre várias aplicações se recorrer a diversos fabricantes. Os fabricantes mobile foram os primeiros a ter noção desta realidade e a preparar-se para se tornarem o principal player de objetos conectados. Depois da Apple, com o HomeKit, e da Samsung, com o SmartThings, a Xiaomi propõe uma plataforma intitulada “Mi Home” que integra já um conjunto de objetos conectados e que é também aberta a fabricantes externos. Para acelerar o processo, a Xiaomi aproxima-se das grandes marcas de electrodomésticos ajudando-as na viragem para a IoT e desenvolvendo também “smart modules”, que lhes permitem tornar os seus produtos tradicionais em produtos “inteligentes”.
O smartphone no centro da estratégia IoT da Xiaomi, desde a sua primeira apresentação em Janeiro de 2015
Recentemente, a Xiaomi consolidou ainda mais a sua estratégia de integração tornando-se oficialmente um operador de telecomunicações (MVNO-Mobile Virtual Network Operator) na China. Mas a competição local torna-se cada vez mais difícil e a expansão internacional mostra alguns sinais de atraso, muitas vezes por questões de licenciamento nos mercados locais. Se é verdade que os objetos são agora “conectados”, a Xiaomi ainda luta para convencer o mundo de que os seus produtos são verdadeiramente inteligentes, ou até mesmo disruptivos. Por isso, não é surpresa constatar que uma bateria externa ou uma tomada múltipla se tornam best-sellers, mesmo que não tenham nada de smart e sejam apenas funcionais.
Com apenas cinco anos de vida, a Xiaomi ainda está a tentar descobrir um modelo de negócio viável. A maioria das suas receitas ainda provem da venda de smartphones e os serviços e os conteúdos não chegam a representar 1,2%: A Xiaomificação ainda é um modelo a provar.