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Já não há mercado, apenas clientes!

“Já não há mercado, apenas clientes”. Esta é uma máxima bem simples, que, para nós, tem o valor de um teorema da nova economia. Eis a demonstração.

A noção de mercado, no sentido de setor, tal como o mercado automóvel, o mercado da saúde, o mercado imobiliário ou o mercado da moda, tem cada vez menos sentido. A constatação é clara e a transformação digital leva-nos a deixar de olhar para o mundo através dos mercados e das suas cadeias de valores, para olharmos antes para as cadeias de acesso a um serviço ou um produto.

Quantas vezes a Amazon – que é importante relembrar que começou como uma livraria online em 1994 – ilustrou tão bem este propósito, tendo-se posicionado em mercados tão diversos como variados.

Senão vejamos. Em junho de 2017, a Amazon posicionava-se em força no mercado da distribuição alimentar concretizando a maior aquisição da sua história (Whole Foods por 13,7 mil milhões de dólares).
Em setembro do mesmo ano, a Amazon decide ser Fashion desfilando (com uma coleção criada pelo designer Nicola Formichetti) na London Fashion Week.

E, finalmente, em outubro de 2017, a Amazon torna-se uma “farmácia” obtendo a autorização para vender medicamentos em 13 estados americanos.

O exemplo arquetípico da Amazon ilustra uma tendência de fundo, largamente observada na Google, Apple, Facebook e Amazon: já não há fronteiras entre mercados, as barreiras à entrada são baixas, o enriquecimento da experiência do cliente leva as empresas a saírem dos seus mercados históricos ou das suas zonas de conforto para se alargarem a novos horizontes.

As fronteiras entre os mercados deixaram de ser importantes:

  • Quando a Google é um dos players mais bem posicionados em relação aos automóveis autónomos, com a Waymo;
  • Quando a solução de partilha de dados de saúde Healthkit da Apple é integrada nos hospitais americanos;
  • Quando o Messenger se inspira no WeChat e se torna um serviço bancário que permite trocar dinheiro entre amigos;
  • Quando a Amazon se lança na produção de uma série – O Senhor dos Anéis – investindo 250 milhões de dólares.
As fronteiras entre os mercados esbatem-se

Se é assim tão fácil entrar em qualquer mercado é porque as fronteiras entre os mercados caíram. Ainda se lembra das suas aulas de estratégia? Daquelas que nos ensinavam que as barreiras à entrada num mercado são uma defesa essencial face à famosa ameaça dos novos concorrentes definida por Michael Porter. Esqueça, as barreiras já não existem.

E o que explica o fim das barreiras? Como deve calcular, elas não caíram por si. Com a nova economia, o digital é uma vantagem considerável para quem queira derrubá-las. Google, Apple, Facebook e Amazon abalaram quatro pilares do mundo tradicional dos negócios:

  • A regulamentação: Num mundo em que estas empresas estão sempre um passo à frente, a regulamentação perde o seu papel coercivo para se transformar, na melhor das hipóteses, numa regulamentação que se adapta a uma panóplia de novas alavancas engenhosas, só possíveis através do digital. Como exemplo, basta pensar no cartão de crédito que permite escapar aos impostos do AirBnB (o qual a empresa se viu obrigada a desistir em França), que ilustra bem este ponto…
  • A tecnologia: Marc Andreessen afirma software is eating the world. Ao dizer isto, está a dizer tudo. A barreira tecnológica é hoje uma curta vantagem sobre a concorrência que pode muito rapidamente ultrapassá-la. É o que leva Elon Musk a partilhar as patentes da Tesla com o mercado. Porquê? É simples, ele explica que “se uma empresa depende das suas patentes, é porque não inova suficientemente rápido”. Elon Musk está certo neste ponto: não é seguramente o avanço tecnológico da Tesla sobre os automóveis elétricos e autónomos que lhe permitirá conquistar e conservar a sua fatia de mercado no setor da mobilidade. Aliás, a Daimler investiu mais de mil milhões de euros na produção de baterias para automóveis e tem a intenção de apostar no mercado das baterias para casa. Para continuar a construir o futuro, a Tesla vai ter de olhar para outras alavancas.
  • A distribuição: Enquanto que no passado, para vender os seus produtos ou serviços, era necessário ter meios de distribuição próprios (fisicamente) ou estar à altura de distribuir diretamente (grande distribuição, wholesale…), hoje uma panóplia de soluções (sites, marketplace, redes sociais, aplicações…) permitem distribuir diretamente produtos em poucos cliques.
  • O Business Model: A necessidade de investir massivamente para entrar num mercado torna-se também uma barreira cada vez mais ultrapassável. No passado, era necessário realizar investimentos massivos para financiar o início da sua atividade. Hoje, temos desde o crowdfunding à produção de produtos pré-pagos pelos clientes, como por exemplo o Asphalte, um site no qual paga a sua roupa antes de ser produzida. O digital oferece inúmeras alavancas de ação para optimizar o seu business model e minimizar investimentos necessários à operação de uma atividade. A emergência de plataformas de economia da partilha são um bom exemplo, baseando-se na exploração de excedentes dos consumidores em externalizações positivas. É assim que a Airbnb se torna o primeiro “hoteleiro” do mundo sem um único hotel, que a Drivy tem um ativo de 1 milhão de carros para alugar sem ter um único carro, ou que o Vestiaire Collective tem um catálogo de mais de 600 mil artigos de luxo sem ter uma única peça de vestuário. O princípio é simples: o digital permite ultrapassar as fronteiras históricas de entrada num determinado mercado, mas por outro aumenta mais uma das barreiras que é, e continuará a ser, imutável ainda por muito tempo: a relação com o cliente.
Um único eixo de crescimento a considerar: a relação com o cliente

É evidente que a partir do momento em que a empresa tem uma ligação diária, ou quase diária com um cliente, está melhor posicionada para lhe propor regularmente a sua oferta e tornar mais difícil para um concorrente tomar o seu lugar. Na era em que os dados (principalmente os dados do cliente) são considerados como o novo petróleo, permitindo às empresas recolher, agregar e medir todas as suas interações com os clientes, a relação com os clientes é mais do que nunca o Santo Graal para qualquer empresa.

Muito mais do que uma barreira para os concorrentes, uma relação personalizada e íntima com os clientes torna-se o novo standard de utilização para o qual é necessário adaptar-se. Um standard mais uma vez imposto pelos GAFA, que, desde muito cedo, criaram uma relação direta com os clientes uma vantagem competitiva que lhes permite hoje entrar em diversos mercados.

É na procura pelo enriquecimento da experiência do cliente que a Amazon foi alargando a sua oferta e não o inverso. De uma forma mais simples, o principal eixo de desenvolvimento da Amazon é hoje o seu programa de fidelização: o Amazon Prime. Todos os serviços e produtos são o reflexo desse desejo em que o que interessa é proporcionar uma experiência o mais completa possível ao cliente. E é com o único objetivo de valorizar continuamente, de melhorar permanentemente, que a Amazon está disposta a pagar 250 milhões de dólares para obter uma licença d’ O Senhor dos Anéis, que está empenhada na distribuição da Alexa em todos os suportes, que está a investir na venda de produtos através do Dash Button ou ainda, mais recentemente, a criar um espelho de realidade virtual para nos ajudar a escolher melhor a roupa comprada online.

Jeff Bezos explica a força desta estratégia que, até prova em contrário, parece ser uma estratégia vencedora:

“Monetizamos o Amazon Prime de uma forma muito pouco usual. Quando há Globos de Ouro, vendemos mais sapatos”.

Até que se prove o contrário, já não há mercado, apenas clientes.

Já em 1999, na UNESCO, quando Edgar Morin apresentou o seu relatório Os sete saberes necessários à educação do futuro defendia que “é necessário aprender a navegar num oceano de incertezas através de arquipélagos de certezas”.

A visão de Edgar Morin faz, hoje, mais sentido do que na altura, agora que muitas empresas navegam sem terra à vista num oceano (mercado), abalado pelo digital. Para conquistar e conservar a sua fatia de futuro, as empresas devem, mais do que nunca, ter um rumo e navegar em direção aos únicos arquipélagos de certeza: os seus clientes.

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