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Quais os pontos em comum entre o Hip-Hop e o Digital?

Quando a Beyoncé decidiu lançar o álbum “Beyoncé”, no final de 2013, não precisou de ninguém: anunciou-o diretamente aos fãs, através das redes sociais, sem nenhuma promoção. Com isso, “esmagou” a Internet: atingiu mais de 800 mil vendas em três dias e os servidores do iTunes foram abaixo devido à afluência… Isto representa um ponto de viragem na história da indústria da música”.

Eric Villemin é um ex-jornalista francês, criador, nos anos 2000, de um dos sites mais relevantes no mercado francês, L’Internaute, e posteriormente diretor-geral do negócio Internet do grupo Les Echos. Atualmente, é consultor independente, coach e colabora regularmente com a FABERNOVEL e que decidimos entrevistar por ser fã de Hip-Hop, desde a sua génese. Nesta entrevista o desafio foi que se debruçasse sobre duas culturas: o Digital e o Hip-Hop.

Como é que descobriu o Hip-Hop?

Eric Villemin (ER): Em 1982, tinha 20 anos, altura em que surgiu o primeiro grande sucesso mundial “The Message” de Grandmaster Flash & the Furious Five. Esse ano ficou também marcado pela primeira tournée de Hip-Hop em França, com “New York City Rap” que juntou bailarinos, graffiters, rappers, DJ’s e, até mesmo, saltadoras à corda. Nessa altura, apercebi-me que se tratava de um movimento, mais do que apenas música. Havia uma energia incrível em tudo isto.
Alguns anos mais tarde, comprei o meu primeiro computador, um Atari ST. Para mim, a descoberta do Hip-Hop e do Digital aconteceu na mesma altura, em simultâneo. Essa é  uma das razões pelo qual associo sempre estas duas culturas.

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Poster da tournée New York City Rap em França (1982)

Qual o ponto em comum mais flagrante entre o mundo Digital e o Hip-Hop?

ER: Antes de mais, a tecnologia! O Hip-Hop nasceu graças a uma tecnologia – vinil e mesa de mistura – ou melhor, na forma como ultrapassou a limitação tecnológica da época.  As mesas de misturas foram originalmente criadas para “ligar” as músicas nas discotecas. Os primeiros DJ’s apropriaram-se totalmente desta ferramenta para misturar músicas, fazer break e scratch (paragens e arranhar do som). Foi verdadeiramente graças a eles que tudo começou: o Kool Herc (desde 1973) e depois o gigante Grandmaster Flash que criou a arte de deejaying.

Depois passámos do analógico ao digital, do transístor aos componentes eletrónicos. Os samplers e as caixas de ritmo moldaram o Hip-Hop. É fascinante ver como estes instrumentos eletrónicos, a maioria concebidos por engenheiros japoneses, foram utilizados, recuperados, ultrapassados. Recordo-me, por exemplo, da mítica Rolland TR-808, uma caixa de ritmo que influenciou a música dos anos ’80-’90, do Afrika Bambaataa aos Beastie Boys, dos Run DMC ao LL Cool J. Bastava que surgisse uma nova máquina para criar entusiasmo e gerar rivalidade entre produtores. Isto lembra um pouco o espírito de competição que reina hoje entre os programadores. Uma battle de um lado, um hackathon do outro…

Podemos falar de uma democratização de dois movimentos graças à tecnologia?

ER: Podemos fazer um paralelismo entre o open source nas startups e o sampling no Hip-Hop. Esta música não nasceu do nada, originalmente tem raízes no Soul, Funk, por vezes, Jazz ou Rock. Os DJ’s e os produtores têm, normalmente, coleções gigantescas de discos e uma cultura musical impressionante. Eles fizeram o “sampling” dos seus antecessores: foram buscar baixos por um lado, metais por outro, e adicionaram uma pitada de sons estridentes de James Brown. Pouco a pouco, a palette de sons alarga-se e os produtores recorreram a músicas do mundo, a música popular ou até mesmo aos diálogos de filmes. Evidentemente que, quando os responsáveis pelos discos e o seu batalhão de advogados se envolvem, o lado “open” regride substancialmente… mas, de qualquer forma, as duas culturas partilham uma ideia comum: o código aberto do lado do digital (open source) e os sons a reutilizar (samplings) do lado do Hip-Hop.

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Post de Mark Zuckerberg no Facebook no encontro com estrelas de Hip-Hop na Nigéria

Nos anos ’70, emergiu também a cultura “Do it Yourself” (DIY). Que papel é que esta teve na cultura digital e do Hip-Hop?

ER: O DIY foi central no Hip-Hop desde a sua génese e o mesmo se aplica ao Punk. Acabávamos de sair da época do sopro que valorizou os virtuosos (Genesis, Pink Floyd, Yes,…) e em que os solos de guitarra duravam uma eternidade. E depois surgiu o Punk e o Hip-Hop e voltou a energia. A atmosfera passa a: “queres subir ao palco? Just do it, motherfucker!”. O “bilhete de entrada” para os artistas era baixo comparado com outros estilos musicais. Não precisamos de muito para fazer Rap.

O DIY também se expressou através da mistura de cassetes (mixtapes). À semelhança do que acontece com uma startup que lança rapidamente o seu MVP [Minimum Valuable Product], os rappers e os DJ’s gravavam demos em cassetes. Muitas vezes, distribuíam-nas em lojas de discos ou de roupa para se darem a conhecer e conquistar os primeiros fãs. Por vezes, conseguiam captar dinheiro (entenda-se assinar contrato com uma editora), e passar à produção. Nos dois casos, o time-to-market é bastante reduzido e o produto vai sofrendo melhorias.

DIY

A cultura “Do it Yourself” é hoje elevada ao expoente máximo por artistas como Jay Z, Kanye West, Sean “Diddy” Combs, Dre ou Pharell Williams. São grandes empreendedores, muito ricos, dos quais temos o sentimento que não têm limites, nem áreas de atuação definidas. Para além da música, lançam-se na moda, na eletrónica de grande consumo (Dre vendeu a Beats à Apple em 2014 por 3 mil milhões de dólares!), nas plataformas de música, no imobiliário, na bebidas alcoólicas, no desporto, no capital de risco…

Ficamos com a sensação de que estamos a assistir a uma desintermediação…

ER: Absolutamente. Quando a Beyoncé lançou o álbum “Beyoncé”, no final de 2013, não precisou de ninguém: divulgou-o diretamente aos fãs, através das redes sociais, sem nenhuma promoção. Resultado, “esmagou” a Internet: atingiu mais de 800 mil vendas em três dias e os servidores do iTunes ficaram em baixo devido à afluência… Isto representa um ponto de viragem na história da indústria da música.

Esta abordagem foi também adotada por Jay Z na compra da plataforma de música Tidal, que surgiu com uma espécie de cooperativa, um “United Artists” do Rap, que poderia saltar por cima de numerosos intermediários da indústria da música.

Dentro de outro género musical, o produtor DJ Khaled tornou-se “rei” do Snapchat, com 2 milhões de seguidores. Ele também não precisou de ninguém para se promover e para comunicar. Recentemente, anunciou que ia deixar o Snapchat para se dedicar ao Instagram – uma decisão dura para o Snapchat…

Podemos dizer que o hip-hop e o Digital representam as culturas “colaborativas”?

ER: Sim, totalmente. Um disco dos Rolling Stones, é um disco dos Stones: 4 músicos inabaláveis, por vezes incluíndo convidados e um produtor que pode mudar. Os métodos de trabalho são semelhantes aos de uma empresa “clássica”, com um core sólido e fornecedores.

Por outro lado, quando Kanye West lança um álbum é tudo muito mais aberto. Aproximamo-nos mais da open innovation e do trabalho colaborativo: dezenas e dezenas de pessoas colaboram entre si, muitas vezes sem nunca se encontrar. No Yeezus, lançado em 2013, podem ouvir outros rappers (os featurings), DJ’s/produtores (Daft Punk, Brodinski, Gesaffelstein), músicos, etc. Trata-se de um verdadeiro ecossistema!

cultura_colaborativa

Existe algum rapper de que seja particularmente fã?

ER: Neste momento, claramente, o Kendrick Lamar porque é o que trabalha mais “à moda antiga” e tem referências muito interessantes. Além disso, aprecio o seu flow. Sou fã também do Kanye West que, na minha opinião, é sobrevalorizado como personalidade e amplamente subestimado do ponto de vista musical. Gosto também de outros rappers com menor nível de popularidade, como o Mick JenkinsJonwayne ou o irlandês Rejjie Snow.

Aqui também podemos estabelecer um ponto em comum entre a economia digital e o Hip-Hop: a coexistência de um vasto underground – as startups / os rappers mais confidenciais, a “Face B” , como diria Akhenaton – e uma economia global convencional – os GAFA (Google, Apple, Facebook e Amazon)/Jay Z e companhia. O que há de interessante em ambos os casos é uma certa recusa ao estrelato. A Amazon, líder mundial do e-commerce, mantém os seus métodos e a sua identidade original de startup, assente numa certa frugalidade. O mesmo se aplica a Kanye West que, apesar pertencer ao mundo dos “gigantes”, conserva a sua “Street Credibility”.