
Serge Abiteboul assistiu à primeira demo do Google
Encontrámo-nos com Serge Abiteboul, um investigador francês e computer scientist no INRIA (Instituto Francês de Investigação em Ciência da Computação e Automação) e na ENS (Escola Normal Superior de Paris), ex-titular da cadeira de TI e Ciências Digitais no Collège de France, que recentemente foi co-autor dos livros Le temps des algorithmes (“A Era dos algoritmos”), com Gilles Dowek, e Terra Data, com Valérie Peugeot.
O seu background e história fora do comum surpreenderam-nos. Serge Abiteboul vivenciou a Stanford de Larry Page e Sergey Brin, no final dos anos ’90. Nesta entrevista, fala-nos sobre aquele tempo e sobre a “revolução do pensamento” que possibilitou o aparecimento de algoritmos. Uma revolução que tanto amamos como tememos e que continua a desenvolver-se e a surpreender-nos.
Deixou a California nos anos ’80…
Eu estava nos Estados Unidos no início dos anos ’80 – estava a trabalhar na minha tese em Los Angeles – e só quando regressei a França é que percebi o fosso entre França e os EUA em termos de ciência da computação naquela época. Para ter uma ideia, quando morava nos EUA, muitas vezes enviava e-mails para outros investigadores em todo o mundo. Na mesma altura, em França, os poucos investigadores que usavam e-mails na maioria das vezes só podiam usá-los nas empresas. Quanto à Web, ainda não existia.
Como chegou a Stanford em 1995?
Voltei para os EUA por motivos pessoais: na verdade, acompanhei a minha esposa, que ia desenvolver um ramo de uma startup francesa em Palo Alto. Encontrei, rapidamente, um emprego como professor convidado no departamento de ciência da computação em Stanford.
Foi durante a bolha das dot-com…
Stanford tinha uma dinâmica maravilhosa. No meu grupo de investigação, foram criadas várias start-ups, todos os anos. Um dos investigadores de pós-doutoramento da época, Anand Rajaraman, criou uma ferramenta de comparação de preços que foi rapidamente comprada pela Amazon, por exemplo. Estando no centro desse ecossistema, tinha certeza de que este era o padrão de Stanford. Os meus colegas mais velhos explicaram mais tarde que era realmente uma era de ouro … Eu tive uma sorte incrível!
Em 1996, assistiu à primeira demonstração do motor de busca que se tornaria o Google. Uma demonstração feita por Larry Page e Sergey Brin (pós-doutorado do seu grupo de investigação). Foi impressionante?
Devo dizer que essa notícia já era esperada, porque Brin e Page já tinham explicado o conceito em grupos de trabalho de pequenos comités. Mas para ser honesto, fiquei impressionado com a qualidade dos resultados do seu motor de busca. Na época, estávamos habituados à mediocridade desses resultados, mas com o Google era, realmente, diferente.
Sobre Brin e Page, acho importante desmistificar o mito de dois homens autodidatas que encontraram um algoritmo revolucionário, na sua garagem, por conta própria. Eles não eram autodidatas, nem estavam numa garagem! Eram dois estudantes brilhantes que trabalhavam em Stanford e recebiam ajuda da universidade e de professores que lhes emprestavam os quartos e os equipamentos de que precisavam. Também na época, os industriais vinham aos nossos grupos de trabalho a toda a hora (quando em França eu raramente via algum!). Era uma troca enriquecedora para todos. Foi o coração de um ecossistema efervescente e altamente estimulante.
De facto, Brin e Page encontraram sua ideia original num artigo de John Kleinberg, da IBM. A ideia brilhante deles era usar o algoritmo “HITS” de Kleinberg, simplificá-lo e aplicá-lo à escala da Web para organizar milhões de páginas (ainda não estávamos a falar de milhares de milhões). Devemos reconhecer que Brin e Page, além de modificar o algoritmo, tinham grandes ideias, como usar clusters de computadores básicos, em vez de confiar em servidores poderosos e no baixo preço da memória.
Conseguiu antever o sucesso da Google nessa altura?
Podíamos saber se ia funcionar? Sim, nós já sabíamos disso. Podíamos prever tal sucesso? Não, porque o sucesso não veio apenas do motor de busca… Muito rapidamente, eles construíram o seu modelo de negócio com base na publicidade, e é daí que vêm as receitas.
Não tínhamos previsto tal sucesso é verdade… No entanto, houve uma altura em que todos os alunos e professores do nosso grupo queriam trabalhar na Brin e Page. O responsável do nosso grupo teve que ligar a Brin e Page para pedir que parassem de nos usurpar para garantir a sobrevivência do grupo. Se não fosse isso, muitos de nós seriamos multimilionários agora!
Olhando para trás, por outro lado, a escala do sucesso do Google surpreende-o?
Eles conseguiram fazer duas coisas muito diferentes: criaram uma start-up e construíram um império – com todos os novos serviços que acrescentaram progressivamente. Eu posso falar sobre o pouco que sei sobre a criação da start-up. Eles começaram com uma necessidade flagrante: a Web era incrível, mas faltava algo, um bom motor de busca. Eles sentiram a necessidade urgente de encontrar a informação certa num “palheiro” de informação e desenvolveram uma excelente tecnologia. Pessoalmente, acho que o algoritmo de Kleinberg, modificado por Brin e Page, é realmente um dos mais belos algoritmos que conheço.
Conhecendo Brin e Page, acha que o motto deles “Don’t be evil” foi sincero quando o criaram?
Para ser sincero, conhecia muito bem o Brin e muito pouco o Page. O Brin era um homem muito criativo, entrava no meu escritório, todas as semanas, com novas ideias loucas e brilhantes. Também era um verdadeiro idealista. É importante dizer que “Don’t be evil” não é o motto oficial, mas sim “Organize the world’s information and make it accessible and useful”. Brin era alguém que queria fazer coisas boas, pode ter sido ingénuo, mas para mim, era sincero. Não nos podemos esquecer que estes dois jovens eram estudantes de 25 anos que não tinham capacidade para comprar um carro e que, em pouco tempo, tiveram de gerir uma fortuna colossal.
Pensei, durante muito tempo, que o motor de busca não era mal intencionado. Eles começaram com uma visão sincera, mas os investidores transformaram o Google numa empresa como qualquer outra e o motor de busca tornou-se tendencioso.
Ainda me faz sorrir quando leio este excerto do trabalho de investigação deles a anunciar o lançamento do Google: “Acreditamos que a questão da publicidade provoca incentivos mistos suficientes, por isso é crucial ter um motor de busca competitivo que seja transparente e dentro do mundo académico”.
Já agora, o que é um algoritmo?
Um algoritmo é uma sequência de passos a ser executados para resolver um problema. Se quiser organizar páginas da Web ou vestir-se de manhã (evitando calçar meias por cima dos sapatos, por exemplo), existem sempre várias maneiras de fazê-lo, e cada uma é um algoritmo.
Porque é que falamos tanto de algoritmos hoje se já existem há milhares de anos?
O que mudou é simplesmente o facto de que, desde o século passado, construímos computadores capazes de executar algoritmos por nós. Nos séculos XVIII e XIX, os cientistas já estavam a conceber máquinas de cálculo, mas não imaginavam a rede que permitiria a colaboração de milhares de milhões de computadores.
Graças à ciência da computação, encontrámos a maneira de fazer com que outros trabalhem por nós e essa associação computador/algoritmo abre muitas possibilidades, tantas quanto aquilo que podemos criar todos os dias. Um dos exemplos que me impressionou, recentemente, foi o número de colaboradores do Whatsapp (cerca de 30), comparado com o número de utilizadores do Whatsapp (mil milhões). Isto não seria possível sem algoritmos.
Porque é que os algoritmos nos estão a assustar?
É principalmente devido à nossa cultura. As pessoas em França são mais sensíveis a estes assuntos do que na Ásia ou nos Estados Unidos, e os media franceses não ajudam, porque destacam os problemas levantados pelos algoritmos. Os franceses também são bastante complexos: tanto querem proteger os seus dados pessoais como querem continuar a fazer download de aplicações que transmitem esses dados para qualquer pessoa. Eles gostam de TI, mas não suportam o medo do que esta pode fazer.
Devemos olhar para os algoritmos como algo que pode substituir ou complementar os humanos?
O principal medo é perder um emprego por ser-se substituído por máquinas. Por exemplo, a Amazon está a tentar automatizar, cada vez mais, os supermercados, levando assim ao desemprego dos caixas. Mas a verdadeira questão é saber o que é que as pessoas, realmente, lamentam: perder os seus empregos ou as suas receitas? Se me perguntar, é a receita. Se substituirmos as pessoas por máquinas, não podemos deixar que a rentabilidade das máquinas caia no bolso dos banqueiros, ou de outros, mas que seja redistribuída. A questão não é técnica é política.
A segunda questão é filosófica. De facto, até hoje, associámos a nossa vida social ao trabalho, o que é considerado uma virtude. Aqui estamos a falar de nenhum trabalho… porque seremos substituídos por máquinas. A transformação atual parece brutal, mas não vamos exagerar. Teremos tempo para nos ajustarmos porque esta transformação vai levar tempo: não estamos a falar de 5 ou 10 anos, mas muito mais até que o trabalho desapareça quase completamente.
Então, a melhor maneira de falar sobre esta transformação é compará-la à revolução industrial?
É mais uma revolução de pensamento do que uma revolução industrial. Não se trata apenas de aceder a uma nova ferramenta, porque, enquanto isso, temos que adquirir uma nova maneira de pensar, temos que transformar as nossas mentes para usá-la. Acho que devemos comparar o aparecimento de algoritmos ao aparecimento da escrita, e não à do vapor.
Organizações hierárquicas, sejam empresas ou governos, não estão atualizadas para utilizarem esta ferramenta e vão ter de se ajustar. Esta grande mudança afeta muitas áreas. Por um lado, a maneira como fazemos ciência evoluiu muito: por exemplo, a análise de dados modificou bastante o que os climatologistas fazem e, em biologia, o ADN pode ser estudado como um programa.
A inteligência artificial está a ganhar um lugar maior no debate público. É um prolongamento dos algoritmos ou algo totalmente diferente?
Para mim, a IA não é um campo em si, é um “ponto de venda” e não ciência. Desde os seus primórdios, a ciência da computação teve um único objetivo: resolver problemas com máquinas e, como consequência, executar tarefas no lugar dos seres humanos. Essas máquinas usam o que chamamos incorretamente de inteligência. Em Machine Learning, graças a uma fase de aprendizagem, podemos pegar no mesmo algoritmo e, de acordo com os dados que o alimentamos, ele mudar. Acho incrível resolver problemas que não conseguíamos resolver antes, como o reconhecimento visual. O jogo do Go é outro excelente exemplo recente: usamos um algoritmo de aprendizagem que analisou os jogos de vários jogadores antes de aprender a jogar contra si mesmo. No final, venceu os maiores campeões. Não é uma ciência nova, ainda é ciência da computação. Nós não criamos uma nova ciência sempre que descobrimos um novo tipo de algoritmo.
Uma tecnologia é inerentemente neutra? Ou, por outras palavras, pelo que é que os programadores de algoritmos são responsáveis?
Está claro que é a maneira como usamos a tecnologia que é má, boa ou neutra. Eu descarto os dois pontos de vista extremos sobre esse tópico: a versão “unicórnio” que diz que “vamos lidar com tudo isto”, e a “Frankenstein” que podemos entender como “o Google está a espiar-nos, o Facebook está a transformar os nossos filhos em zombies…”. A verdade é que os algoritmos não são nem bons, nem maus. Eles são escritos por humanos e podem ajudar-nos a viver melhor ou não. Hoje, a responsabilidade não é apenas um privilégio dos cientistas da computação: toda a sociedade é responsável.
Para ilustrar isso, quero voltar ao caso do Google que discutimos anteriormente, que agora é um problema em si, porque pode criar enormes desequilíbrios competitivos. A culpa não é dos engenheiros do Google, mas a responsabilidade agora é da sociedade de definir regras e dos cidadãos usarem ou não esse motor de busca. A única coisa que podemos culpar o Google é que eles fingiram que os resultados do seu motor de busca eram neutros. Pessoalmente, eu agora uso o Qwant, que me lembra o Google do início dos anos 2000… A escolha é nossa!