
Todos designers, todos responsáveis?
Num mundo onde a tecnologia abala profundamente a forma como trabalhamos, como interagimos e como vivemos, o papel do designer é de imaginar futuros desejáveis. Mais do que nunca, o designer tem uma responsabilidade ética relativa aos produtos e serviços que vão transformar a nossa sociedade.
Charles Chu estimou que teríamos tempo para ler pelo menos 200 livros por ano, se não passássemos tanto tempo nos media sociais. A Netflix revelou que o número de binge racers (Binge racer: utilizador que acaba de ver uma série em menos de 24 horas depois da sua saída) na sua plataforma passou a 8,4 milhões. A Amazon vendeu mais de 500 milhões de dispositivos conectados com a sua assistente virtual Alexa. Enfim, tantas provas – entre tantas outras – de que a tecnologia ocupa cada vez mais lugar nas nossas vidas.
É para melhor?
As inovações tecnológicas não têm cessado de melhorar as nossas vidas, de enriquecer as nossas experiências e de facilitar as nossas interações com o mundo e com as pessoas que nos são valiosas. Muitos são os exemplos em as tecnologias alteraram por completo as nossas vidas, como o iPhone, mas também os carros elétricos ou, indo mais longe, o frigorífico, a máquina de lavar, o avião…
Hoje, estamos entusiasmados com a inteligência artificial, os objetos conectados ou ainda a realidade virtual. As oportunidades são seguramente numerosas e as derivadas ainda mais. Algumas tecnologias parecem virar-se contra nós, outras parecem não passar de gadgets e, de repente, estamos rodeados de assistentes vocais que contam piadas, de óculos de realidade virtual que nos transportam para fora do que nos rodeia, de redes sociais, que em vez de nos aproximar, nos fecham num filtro das nossas próprias vidas.
Será este o mundo em que queremos mesmo viver?
Parece hoje importante que paremos para pensar, para observar o mundo à nossa volta e questionar-mos se é esta a sociedade na qual queremos viver.
Tecnologia é bom, mas…
A tecnologia é uma coisa boa, mas depende das mãos em que vai parar.
Já existem muitas pessoas a lançar alertas, sobretudo de Silicon Valley sobre as eventuais derivadas das suas próprias criações (se este tema lhe interessa recomendamos este artigo, este ou ainda este).
Durante as eleições americanas, fomos testemunhas do poder dos dados na segmentação e manipulação das pessoas. A Uber paga hoje um preço elevado por ter negligenciado os aspetos éticos do seu serviço, tanto interna como externamente. Em empresas como a Meta ou a Google, já muitos se questionam sobre o digital e a tecnologia nas nossas vidas. Já lá vai o tempo em que, nas suas garagens, os dois fundadores da Google desejavam preservar a neutralidade dos seus motores de pesquisa. Em 1998, Brin e Page declararam “We expect that advertising-funded search engines will be inherently biased towards the advertisers and away from the needs of the consumers”. Vinte anos mais tarde, sabemos todos em que ponto estamos…
A tecnologia é positiva mas depende do que fazemos com ela.
Hoje podemos idealizar tudo, mas o que idealizamos é desejável? Por exemplo, podemos transferir um passe de transportes públicos para um chip e integrá-lo debaixo da nossa pele: sim, é possível, mas queremos mesmo isso?
Estamos sempre conectados, de tal maneira que nos esquecemos do significado de estar aborrecidos, de esperar, de ter tempo para aprender e também para conhecer alguém. Temos medo do vazio, por isso criamos um mundo sem aborrecimento, onde tudo é instantâneo, onde a nossa atenção está sempre a ser estimulada. Eliminamos a sorte e o azar em prol dos algoritmos que escolhem tudo por nós: música, filmes, empregos e namoros.
Eliminar o aborrecimento, eliminar esses momentos de vazio em que não fazemos nada, eliminar a sorte, é perigoso porque eliminamos, pouco a pouco, os ingredientes da criatividade. Estamos a criar um mundo governado por algoritmos em que os que não manipulam são manipulados pelo entretenimento? Em suma, o regresso à caverna…
De quem é a culpa?
Muitas perguntas…
Uma certeza: chegamos a um ponto em que a tecnologia e os seus criadores não podem ignorar as consequências do que criam. Já não é possível ignorar as políticas (enquanto prática) e o social.
Serge Abiteboul, um cientista computacional francês, manifestou a sua opinião sobre o medo das pessoas serem substituídas por máquinas: “Se substituirmos as pessoas por máquinas, não podemos deixar que a rentabilidade das máquinas caia no bolso dos banqueiros, ou de outros, mas que seja redistribuída. A questão não é técnica é política.”
A questão que se coloca é então a da responsabilidade, quem é responsável por este mundo que estamos a criar?
A responsabilidade é da Google, Apple, Meta e Amazon porque são eles que imaginam e comercializam as novas tecnologias, porque são eles que revendem os dados (o verdadeiro petróleo do século XXI)? Ou a responsabilidade é dos utilizadores – ou seja nós – porque decidimos deliberadamente utilizar os seus produtos?
Diabolizar a Google, a Apple, a Meta e a Amazon – como fazem alguns governantes – não é seguramente a solução.
Por outro lado, dizer que é da responsabilidade dos utilizadores conseguir desligar das múltiplas solicitações dos media sociais, dos potenciais vícios do smartphone, seria um pouco simplista. Podemos nós realmente decidir estar desconectados, hoje em dia? Sobre esse assunto, Nir Eyal, autor de Hooked: How to build Habit-Forming products dá-nos algumas luzes no seu blogue aqui.
Assim, os utilizadores também não são responsáveis.
O designer pode (e deve) agir.
Então de quem é a culpa?
“It’s a dirty job but someone has to do it.”
Se é urgente pensar ética, humanismo, social, é também urgente deixar os designers desempenharem um papel estratégico na nova sociedade.
De facto, quem melhor do que o designer para pensar na responsabilidade das sociedades face à tecnologia, para criar cenários de experiência desejáveis?
No seu manifesto por um retro-design da atenção, Hubert Guillaud escreveu precisamente que:
“O design deve voltar a empenhar-se num diálogo com o utilizador. A empresa deve voltar a avaliar os laços que tem com os clientes. Se a experiência está no coração da sua oferta, então podemos deixar o utilizador construir a sua própria experiência em vez de lhe impor uma, isto é sem dúvida uma nova alavanca de inovação para nos permitir ultrapassar os limites fechados das interfaces.”
Porquê o designer?
Porque ser designer não é apenas ser responsável do pixel perfeito ou da cor do botão (isto é outro tema). Porque ser designer é ser o advogado dos utilizadores, é imaginar produtos e serviços que as pessoas querem – explicita ou implicitamente expresso. Quer dizer estar à escuta das pessoas e do mundo que nos rodeia para construir serenamente um amanhã, para construir uma sociedade duradoura e um mundo no qual as nossas crianças podem crescer felizes.
Ser designer é pensar e construir um mundo “muito humano em vez de transhumano” (fórmula de Alain Damasio, explicada neste Ted Talk).
E como diz Serge Abiteboul, “já lá vai o tempo em que a responsabilidade era dos engenheiros para se tornar a responsabilidade de toda a sociedade.” Quem melhor dos que os designers para ser os justos representantes desta sociedade?
E finalmente, ser um designer responsável é o quê ?
- É pensar durabilidade
- É pensar humano
- É pensar social
- É pensar no impacto, porque ser designer é conceber, imaginar para os outros em sociedades e contextos em mudança, ou seja é pensar no impacto sobre a vida de cada utilizador, sobre o grupo e sobre o contexto. O design não pode ser sistémico.
- É continuar a inovar e a criar, mas também questionar para que serve, porquê e como pode servir ainda melhor.
- É questionar a ética dos produtos, serviços e experiências desde a sua criação e não apenas quando já estão concluídos…
E se amanhã fossemos todos designers, então seriamos todos responsáveis pelo mundo que estamos a criar…